Este catálogo é um dos resultados de dois anos de pesquisa de uma equipe composta por pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz (COC), da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP)e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), cujo projeto, intitulado A história da poliomielite e de sua erradicação no Brasil, foi financiado pelo Programa Estratégico de Pesquisa (PEP/COC) e contou com o apoio do Consel ho Nacional de Pesquisa (CNPq), com bolsas de iniciação científica.

No Brasil, embora haja referência a casos de poliomielite durante as últimas décadas do século XI X, a literatura indica que ela passou a ser obser vada com mais freqüência no início do século XX. As primeiras evidências de surtos da doença ocorreram entre 1909 e 1911, no Rio de Janeiro, descritas por Fernandes Figueira, à época diretor da Policlínica de Crianças e pediatra do Hospício Nacional de Alienados. Em 1930, várias epidemias de certa magnitude foram registradas em São Paulo e em outras capitais do Brasil. A partir de 1950, passaram a ser descritos surtos de poliomielite em diversas cidades do país e, em 1953, ocorreu no Rio de Janeiro a maior epidemia já registrada na cidade.

Se, na primeira metade do século XX, as discussões sobre a poliomielite no país se davam basicamente no âmbito médico, principalmente em torno de modelos científicos explicativos da doença e da sua forma epidêmica de incidência, na segunda metade do século a aquisição de novas tecnologias – vacina, diagnóstico laboratorial e vigilância epidemiológica – deslocou o foco de discussão para a área da saúde pública e possibilitou a implementação de políticas voltadas para o controle da doença.

As atividades de vacinação em massa contra a poliomielite foram iniciadas em 1961, com a adoção oficial da vacina Sabin, pelo Ministério da Saúde. Entretanto, não tiveram a abrangência e a continuidade necessárias para o controle da doença no país. A essa época, também foi introduzida no Brasil a técnica laboratorial de diagnóstico do poliovírus, no Instituto Oswaldo Cruz, tecnologia da maior importância para o diagnóstico diferencial da poliomielite, bem como para identificação do tipo do poliovírus de um surto da doença. Ainda na década de 1960, foi estabelecido o conceito de vigilância epidemiológica, por Alexander Langmuir, epidemiologista norte-americano. No Brasil, a Fundação de Serviços Especiais de Saúde Pública (FSESP)criou, em 1968, o Centro de Investigações Epidemiológicas, tornando obrigatória a notificação de poliomielite, nacionalmente.

Contudo, em que pese a aquisição das novas tecnologias, o problema da poliomielite não foi enfrentado de forma efetiva. Em 1971, o Ministério da Saúde instituiu o Plano Nacional de Controle da Poliomielite – primeira tentativa de controle da doença no Brasil organizada nacionalmente –, que prosseguiu até 1974, quando a estratégia de campanha foi abandonada e priorizou-se a vacinação de rotina pela rede básica de saúde, coordenada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973. A avaliação que se teve, feita por especialistas da área, é que a vacinação de rotina era insuficiente para controlar a poliomielite, até porque a maior parte da população não tinha acesso regular aos ser viços de saúde.

Somente em 1980, o Ministério da Saúde veio a estabelecer outra ação estratégica específica para a poliomielite. Dada a gravidade do problema no Brasil, reconhecido inclusive pela OMS em reuniões de avaliação da situação da doença nas Américas, somada à repercussão nacional que tiveram as epidemias que eclodiram no sul do país em dezembro de 1979, o recém-empossado ministro da saúde Waldir Arcoverde tomou a iniciativa de enfrentar decididamente a questão. Sua equipe propôs uma estratégia de vacinação em massa, em um só dia, duas vezes ao ano, em todo o território nacional :Dias Nacionais de Vacinação.

Essa proposta encontrou resistência entre sanitaristas que defendiam a vacinação de rotina. Contudo, o impacto da campanha foi altamente positivo, produzindo uma acentuada redução do número de casos da doença. O reconhecimento público dos Dias Nacionais de Vacinação consagrou definitivamente essa estratégia, que continua a ser implementada sistematicamente no Brasil.

No âmbito da OPAS e do Unicef discutia-se a necessidade de reforçar a credibilidade em vacinas, aproveitando os ecos da erradicação mundial da varíola, e decidiu-se pela erradicação da poliomielite nas Américas pelo fato de vários países já apresentarem experiências de sucesso no seu controle. A OPAS anunciou a meta de interromper a transmissão do poliovírus selvagem das Américas até 1990, com o apoio do Unicef, USAID, BID e Rotar y Internacional. Na XXXI Reunião do Conselho Diretivo da OPAS, realizada em setembro de 1985, os países-membros aprovaram e se comprometeram com essa iniciativa. No Brasil, a interrupção da transmissão do poliovírus selvagem passa a inserir-se no programa de prioridades sociais da Nova República em 1986.

Em março de 1989, foi notificado o que seria o último isolamento do poliovírus selvagem no país, no município de Souza, na Paraíba. A partir de 1990, embora mantendo as estratégias utilizadas até então para alcançar a erradicação da poliomielite, o Brasil direcionou o programa para o cumprimento dos critérios estabelecidos pela Comissão Internacional de Certificação da Erradicação da Poliomielite, recebendo a certificação em 1994.

Nessa pesquisa, analisamos a poliomielite no Brasil em uma perspectiva de história das doenças. Essa perspectiva possibilita o entendimento da doença como fenômeno social, cujo significado é construído de forma particular por cada cultura e nos leva a uma reflexão sobre os tipos de resposta dados pela sociedade à doença, quer em nível médico-científico, quer pelo poder público ou por grupos sociais, bem como pelos indivíduos. No caso da história da poliomielite, ela revela claramente o desenvolvimento e a legitimação das políticas públicas de saúde nacionais e internacionais, o processo de incorporação de tecnologias e as práticas e construções discursivas da medicina com vistas ao controle da doença, em que estão envolvidos sociedade, Estado, instituições, mercado e organismos internacionais. Além disso, ela produz repercussões na construção da identidade individual das vítimas da doença, que precisam enfrentar as seqüelas ao longo da vida.

A história oral, neste projeto, colocou-se como fonte para a própria pesquisa, além da constituição de um acervo de depoimentos orais, acessível a outros pesquisadores. A seleção dos depoentes, feita a partir da indicação do consultor do projeto, Eduardo Maranhão, pesquisador da ENSP/Fiocruz, procurou contemplar o conjunto de aspectos referentes à poliomielite :epidemiologia, saúde pública, virologia, vacina, controle de meio ambiente, neurologia, pediatria, ortopedia, imunização, comunicação social, bem como a atuação do GT-pólio, do Programa Nacional de Imunização e do Rotar y Club. Percebeu-se que, para o conjunto dos profissionais entrevistados, a história da poliomielite se inicia na década de 1970, com o Plano Nacional de Controle da Poliomielite, implementado pelo Ministério da Saúde em 1971.

O objetivo deste catálogo é divulgar e tornar acessível a outros pesquisadores o acervo Memória da Poliomielite. Nossa expectativa é trazer contribuições para o desenvolvimento de análises no campo de história das doenças e, em particular, sobre a história da poliomielite. Esperamos estimular a formulação de novas análises para o entendimento do conceito de doença na sua construção histórico-social e contribuir para a história das doenças como área de pesquisa no Brasil.

Aproveitamos para reiterar os agradecimentos àqueles que se dispuseram a nos conceder entrevistas gravadas que constituem o acervo Memória da Poliomielite.